terça-feira, 16 de março de 2010

"Edgar"

     Naquele dia, sentiu uma vontade súbita de caminhar embora não soubesse exatamente aonde poderia ir. Pouco importava, pensou, e nunca antes tinha se permitido tamanha falta de planejamento.

     Era sábado, e como todos os sábados, almoçava na casa do irmão que casou com uma turca e teve três filhos. Chegava por volta do meio dia, tomava uma taça de vinho branco, atualizava-se dos acontecimentos da última semana, depois se sentavam à mesa, comiam algo que Aisha havia preparado, provavelmente cabrito, Edgar então entregava alguns doces para os sobrinhos e por volta das cinco já estava em casa. Mas naquele sábado, seu irmão lhe telefonou pedindo desculpas, cancelava o almoço por causa de um imprevisto. Não explicou, só disse imprevisto.

     Quando Edgar desligou o telefone, a palavra ressoou na sua cabeça. Imprevisto. E quis algo. Não identificou de imediato a vontade, era um impulso. De repente, as paredes do seu apartamento lhe pareceram opressoras e sentiu algo pela primeira vez na vida: sua alma não cabia ali. Pegou as chaves, o chapéu, o casaco e saiu de casa. Ao chegar na frente do prédio, hesitou. Ainda não sabia aonde ir. Lembrou de um caminho que fizera uma vez num dia de chuva porque o de sempre estava alagado, nunca mais retornou por ali porque levava mais tempo para chegar ao trabalho. Mas era bonito o caminho, alguns grafites na parede lhe haviam chamado a atenção. Resolveu ir.

     Logo no primeiro passo percebeu uma autonomia das pernas, que iam tão firmes e ao mesmo tempo relaxadas. E ele sentiu como se estivesse pegando uma carona consigo mesmo. A cabeça sem o peso do compromisso de ter que comandar lhe dava ar para pensar, não precisava controlar sua direção e isso era incrivelmente confortável. Como nunca havia provado antes? O imprevisível. Parecia que algo lhe conduzia. E os pensamentos foram sendo ordenados de forma tão límpida. Tão bom quanto caminhar era ver as pessoas caminhando, apressadas, decididas. Para onde iam com tanta certeza? Pensou que ele também no dia anterior parecia muito certo sobre onde estava indo, mas verdade seja dita, nunca antes havia se sentido tão seguro em relação ao seu caminho quanto agora, indo para lugar nenhum. E foi invadido por um grande pesar ao se lembrar da segunda-feira, quando teria que pegar o antigo caminho, ir até o trabalho, com hora certa, onde tomaria o café no mesmo lugar, onde encontraria as mesmas pessoas. E decidiu: a partir daquele dia, andaria por caminhos diferentes todos os dias.

     A rua, que antes era nada mais que um corredor por onde transitava todas as manhãs, mais um dos tantos corredores do seu cotidiano, pareceu-lhe extremamente poderosa e ampla. Diria ainda mais, diria que a rua era infinita. Diria ainda, mais tarde, quando de tanto caminhar tivesse exercitado bastante a mente, diria que a rua continuava sendo um corredor. Por onde ele passava e decorava com diversos quadros, como bem entendesse, como bem a rua se apresentasse. Flanar, ele diria, flanar é viajar para dentro. É desenhar nas arestas do asfalto cinza as mais coloridas paisagens internas.


CRIAÇÃO: Luanne Araujo 

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