Assumindo o risco, sigo atrás de novos caminhos pelas ruas da cidade, o coração esbaforido na expectativa em perceber a textura das coisas urbanas – os prédios, janelas e vitrines avivados pelos raios de sol a formar sombras cambiantes e transitórias; os intrincados relevos de muros, fachadas e paredes carcomidas, onde o grafite e a pichação dividem espaço com resultados do jogo do bicho e cartazes de propaganda; as ofertas de dinheiro grátis e xérox a zero-vírgula-zero-seis centavos e promessas de uma vida melhor em panfletos fixados nos postes; o vestígio de beleza das mulheres que passam e a teimosia feroz com que se movem os transeuntes.
Os transeuntes. Eretos, curvados, em passos firmes, tranqüilos, agressivos, contempladores, lá vão eles, numa mixórdia de posturas, gestos e movimentos que faz tudo parecer uma espécie de coreografia urbana, alguns cheios de si, dando encontrões uns nos outros ou fitando um horizonte imaginário, obedientes a alguma espécie de regra de um obscuro manual de auto-ajuda – mantenha a cabeça sempre erguida.
A eles pertence a rua. Ao homem de traços fortes e pele extremamente negra a carregar com indisfarçável altivez um buquê de rosas brancas; ao garoto que parece já um adulto em meio ao grupo de alunos escolares, tão contundente em suas expressões e tão expressivo em seus gestos; à mulher asiática cujos traços de rara beleza e pele viçosa incomum a fazem assemelhar-se a uma estátua em mármore; ao porteiro de um edifício comercial a despedir-se de uma jovem morena com um olhar de desejo que, mais do que sexual, transparece admiração e respeito; à mulher que me oferece, com olhos lamuriosos, um cartão com a oração e imagem do santo católico que cuida dos negócios que precisam de pronta solução e cuja invocação nunca é tardia.
Assumindo o risco, sigo atrás de novos caminhos pelas ruas da cidade, procurando identificar que espécie de crimes atormenta a multidão que passa – dica genuína para um verdadeiro manual de auto-ajuda.
CRIAÇÃO: Marcelo Argolo
"que espécie de crimes atormenta a multidão que passa"
ResponderExcluiré uma boa reflexão... transeuntes esfíngicos os que você pintou, de uma cidade quase intocável. mas os crimes...
(bonito texto)