terça-feira, 16 de março de 2010

Ata


      Embora o ministro evitasse falar sobre o assunto, a maioria dos conselheiros insistia. Alguém devia fazer algo, mesmo que esse algo pudesse tomar proporções drásticas, catastrófica"s, apocalípticas, urrou o Barão de Bomtempo. Desse jeito não era possível e, se possível fosse, melhor não seria. É certo que o maior temor dos senhores era que aquela situação lastimável expandisse seus domínios e atingisse o coração da plebe, da gente miúda. Se o causo chegasse aos ouvidos da população haveria agitação, incidentes no centro da cidade, vidros quebrados pela Avenida Central.

      "A turba, meu Deus, a turba!", gritava Bomtempo, sem dúvida o mais nervoso. Mas não era para menos. Do alto de toda aristocracia, não há quem não tema as classes populares exaltadas. E elas haveriam de se exaltar! O primeiro secretário bateu na mesa afim de que se fizesse ordem. Ao menos naquela assembléia tinha de haver alguma. Aos poucos os distintos senhores se calaram, ouvindo-se um último berro de Bomtempo: "a turba".

      O ministro tomou a palavra e não disse nada que ninguém soubesse. Tratou de fingir que acalentava os ânimos e disse que a Casa estava estudando medidas a serem tomadas de forma acelerada e inequívoca. Esta última palavra despertou o Conde Cabrito, que berrou de seu lugar à mesa um despautério retirado desta ata. Mas o que ele quis dizer, com este termo chulo, foi que não haveria de ser uma medida inequívoca se ela não fosse tomada perante e de acordo com aquela assembléia ali formada, sabidamente composta por homens bons, sábios, oriundos de famílias igualmente boas e sábias. Foi o bastante para o caos se instaurar. Não nas ruas como se temia, mas naquela bela saleta recheada de móveis em carvalho, livros com capas grossas e homens de espíritos iluministas.

      Barão de Bomtempo teve um mal súbito e foi retirado do local. Já há informação de que ele passa bem, mas deve ficar temporariamente afastado de seus deveres.

      Mas voltando ao caos, a verdade é que houve tanta civilidade naquela reunião quanto em uma feira livre, e com isso eu quero dizer que ela foi praticamente nula. Tivéssemos frutas e legumes ao alcance de nossas mãos atiraríamos uns aos outros como líderes tribais de uma passado longínquo, quando, devaneio, que as frutas fossem mais abundantes. A mim coube relatar o acontecido. Mas vou me furtar dos detalhes mais sangrentos e das selvagerias das quais os nobres senhores presentes foram capazes.

      O principal fato que preciso explicar é que, durante o transporte do Barão de Bomtempo para o sanatório mais próximo, ele deixou escapar entre dentes, entre delírios, a real situação a qual estava sendo discutida ali. E um dos maqueiros ouviu e repassou a informação para o padeiro na esquina. Sabe-se que a padaria é um dos locais urbanos com maior poder de disseminação de histórias e, neste ponto, não importa mais se trata-se de uma verdade ou de uma fantasia de um barão louco. Ninguém questionou porque um barão ainda tinha alguma voz dentro de um sistema republicano de governo. Ninguém quis saber se ele estava sendo mandado para o sanatório.

      A turba se formou enquanto o ministro e seus conselheiros ainda estavam reunidos. A tal turba. E os digníssimos senhores só perceberam que a situação não era mais segura para seus egos aristocratas quando uma pedra rompeu o vidro da janela que se estilhaçou no tapete persa, ou indiano. Fez-se silêncio na assembléia e a rua invadiu o quarto. Não sem antes o Conde Cabrito lamentar: "a turba, meu Deus". Ao que o ministro mandou-lhe à merda.


CRIAÇÃO: Marcelo Andrade 

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