Esta é uma livre adaptação de A Escrava Isaura, de Bernardo Guimarães.
Poesia de Paulo Siqueira, será apresentada pelo grupo de atores do Óperação Cinema no Espaço Sesc Copacabana durante a maratona de contos do Simpósio de Contadores de Histórias.
Por acaso de brincadeira do destino,
ou quem sabe? De gens travessos.
Parida na Senzala, de negra escrava,
nasce Isaura, negra sem tinta.
Branca na pele alva,
mas de bunda farta e cintura fina,
sua sensualidade mestiça,
a muitos provocava, assim,
a mucama prendada da noiva de Ioiô Leôncio,
era cortejada por muitos, todos,
em fazenda de seu pai, o patrão.
O patrão, pai de Ioiô Leôncio,
pois o pai de Isaura, era Miguel.
Branco e livre, como assim era de ser
naquele Brasil império,
quando o homem se valia por sua fé
e sua raça.
Foi Miguel comprar a liberdade de sua filha,
mas o novo patrão,
desde morte de seu pai,
não deu por agrado de vender.
Em verdade, as curvas fartas da negra sem tinta Isaura,
enrijeciam Ioiô Leôncio.
Como o negócio não se deu,
achou por bem Miguel,
comprar sua fuga,
e assim a levou à Recife.
Sua beleza de lábios angola
em nariz reinol,
despertaram paixão em Álvaro,
o jovem, que a partir de agora,
é o herói de nossa história,
por quem, há de suspirar Isaura,
a negra escrava de pele branca sem tinta.
Pois de tanto que fez Álvaro,
conseguiu ser recebido em casa Isaurina de Elvira,
o nome falso da nossa heroína.
E tanto mais fez, tanto insistiu,
que convidou Elvira ao baile da cidade,
a qual não deveria, por sua segurança devida.
Mas foi.
Bela como uma sereia do mar de Pernambuco,
de olhos mel e cabelos lisos que teimavam em cachear,
era Elvira, nossa Isaura,
prendada não só nos seios rijos e canelas torneadas,
mas também cantava e tocava ao piano,
qual um anjo de voz inocente
e sensualidade inconfessável,
para o louvor de todos.
Todos menos Martinho,
que estranhou seus modos mixolídios
aquela leve dissonância nas dominantes,
o timbre levemente arranhado na voz,
e o percutir ao piano um tanto pouco cristão.
Lembrou assim, Martinho,
Nosso novo vilão,
do folheto do jornal
no qual Ioiô Leôncio,
o verdadeiro malfeitor desta história
de amor e denúncia;
havia por recompensa
de trinta dinheiros,
quem Isaura de novo lhe aprouvesse.
Ioiô Leôncio então,
no justo de sua razão,
pois assim era a lei,
e que fosse cumprida!
Aos protestos de Álvaro,
com a benção da justiça
trouxe Isaura,
a triste escrava,
da pele alva,
negra sem tinta,
de volta pra senzala.
Isolada do mundo e de todos,
a correntada à sua escravidão,
a negra branca Isaura chora,
canta o cativeiro,
canta o amor de Álvaro,
canta o destino de uma só pessoa,
impotente contra seu tempo.
Cantam seus irmãos da senzala,
impotentes contra o império,
o qual enricava sobre seus lombos.
Cantam sua oração de luta e liberdade
sufocada por Ioiô Leôncio,
o dono de suas vidas,
dono de seu destino,
dono de Isaura,
clara em sua pele,
como a lua cheia sobre a noite escura.
Não podia Isaura lutar contra as correntes,
Não podia bramir armas contra Ioiô Leôncio,
Mas podia lhe dizer não.
E cada vez, não!
Escrava por lei justa dos homens,
Assim fazia a cada investida,
Por entre as horas de solidão cativa,
Entre choros e cantos à Álvaro,
Sendo sua solidão maior,
Agora que o amor de paixão
Lhe queimava a pele sem tinta.
Por ser essa sua força,
Encontrou esta forma de luta,
Quando muitos de seus irmãos
morriam às armas,
Dizia não!
IoIô Leôncio ia todas as noites à mão
suar seu suor branco leitoso.
Lutava com todo poder que tinha,
Seus cães, chicotes,
Armas, suas guerras,
e a cada ataque, não!
Pois antes de dormir,
Ia o humilhado patrão,
Pro leito da esposa
De olhos fechados,
Cumprir sua obrigação.
Se entre a alma e o corpo,
Preferia Isaura os suplícios mil.
Que então pagassem seus irmãos negros,
Era ordem aumentar a produção,
O trabalho era dobrado,
Assim seria então.
Pois se não podiam guerrear
contra os que armas e a lei tinham,
podiam mandingar,
e a noite os tambores trovejaram,
dos Campos dos Goytacazes até os Recifes de Pernambuco,
correu por entre os caminhos,
aquele que conhecia as estradas,
dar o chamado dos trovões,
atendeu Álvaro e foi à côrte
comprar as dívidas do falido Ioiô Leôncio.
Pois este, louco da contrariedade
E da fome por sua negritude branca
da espuma da cachoeira de águas negras,
nem mais administrava sua empresa,
Só cogitava ter perto de si,
Aquela que era sua desgraça,
E se ele não a tivesse,
Que Álvaro se coubesse.
Prometeu à Isaura a liberdade,
Mas que presa a si fosse,
Não por escravatura,
Mas por casar com seu jardineiro,
E assim, conformada com seu destino,
Presa ao juramento cristão,
Nunca, embora pudesse ir.
Isaura nem a si
Mais nada pudesse haver.
Mas seus irmãos sofriam,
E por dignidade, como sua mãe
A escrava negra retinta
Lhe ensinou:
Assim como Cristo deu a vida pelos homens
cabe sacrificar-se pelo bem dos irmãos
os quais sofriam a ira do patrão.
Marcou-se o casório,
Para satisfação vexada de Ioiô Leôncio.
Mas eis que na hora derradeira,
Vem ao galope feroz, Álvaro.
No coração o amor Isaura,
Nas algibeiras as notas promissórias de Ioiô Leôncio,
Pois agora, tudo o que antes a este pertencia,
Era agora seu.
Suas terras, sua casa,
seus animais, seus escravos
e sua Isaura.
Ioiô Leôncio derrotado pela própria lei,
Aquela que sempre o fez vencedor.
Louco por sua falência,
Por ter perdido tudo,
Por ver Isaura feliz e livre,
Por saber que nunca a teria,
Seja pelo coração, seja pelo púbis,
Tomou a única saída que lhe cabia,
Esfacelou a cabeça com um tiro por entre a boca.
Assim termina a história de Isaura,
A escrava negra sem tinta,
Da tez pálida e curvas sinuosas,
Cuja a escravidão não agredia por ter nascido branca,
Mas por ser esta uma das maiores infâmias do homem ao homem.
Se era branca Isaura,
Como a lua cheia,
É porque olhos desatentos não podiam ver
O manto negro da noite sob sua luz.
A noite do couro de seus antepassados.
À noite, quando ao redor das fogueiras,
Aonde ainda menina, acompanhava sua mãe
Aos tambores e às danças.
A noite quando mais negra,
À matutina,
Ia Isaura, a mestiça,
Rezar na igreja à luz da aurora.
Calados os tambores,
Tocavam os ministros os sinos da matriz,
Aonde Isaura estudava piano.
Sendo assim, o dobrar do badalo brasileiro
A mistura promíscua
entre os que estavam
com os que chegaram,
os que trouxeram,
foram trazidos,
aos que nasceram.
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